segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Emersão

Estávamos reunidos à volta da mesa vermelha numa espera que parecia interminável. À nossa volta o ar mostrava-se pesado, quase que irrespirável.
Entre goles de café, íamos esperando o que nos tinhas para dizer. Tinhas estampado no rosto a urgência de falar, o que nunca tinha visto em ti. Desenhavas um grito mudo que ecoava até às nossas mentes. Essa mensagem não verbal enregelou-me o coração, como se absorvesse as palavras invisíveis que lançavas. Senti um sufoco na garganta, mas esse sufoco era por saber o quanto este momento significava para ti.
Hesitaste.
Voltaste a hesitar.
Antes de verbalizares, sequer, aquilo que ansiavas por nos dizer, a minha cabeça formou as palavras que te iam sair pela boca, quase como se fossem projectadas por mim, que vociferas numa perfeita sintonia.
Falaste.
Lançaste as palavras de uma forma pausada, deliberada e consciente. Mais do que as palavras, o tom de voz cunhou os vocábulos , conferindo-lhe um carácter grave.
Desviei o olhar por segundos e voltei a encarar-te, só que desta vez, vi-te como nunca te tinha visto. Encostaste-te à cadeira, com alívio, após teres expulsado do mais profundo de ti, uma verdade prisioneira. A partir dali, tudo seria diferente. Tudo era uma nova etapa, uma nova porta que se abria e para a qual não sabias com que contar, mas o que mais me impressionou foi a tua determinação inabalável.
Faltaram-me as palavras. Toda a gente falou, mas eu remeti-me ao silêncio, provavelmente no único momento em que devia fazer com que as palavras deslizassem pela boca. Mas elas morreram na fonte. Queria dizer-te tanto, mas não consegui estabelecer uma sequência mental com tudo o que tinha para exprimir.
Cá dentro os pensamentos deambulavam sobre o teu eixo de coragem e estabeleci uma breve viagem interior. Tentei pôr-me na tua pele, entrar nas tuas memórias e mudar a perspectiva. Passar a ser o sujeito activo, passar a ser tu.
Um segredo corrói, deixa mazelas. Incapacita. Desmorona o organismo como um baralho de cartas, mas tu estavas a dar o peito às balas. Nem por um segundo vi fraqueza nos teus olhos.
Não reclamavas a nossa compreensão ou aceitação. Reclamavas antes a tua própria aceitação. Reclamavas, legitimamente, a verdade sobre ti. Apenas.
O mundo, na sua condição, não conhecia os seus subordinados, os mundos dentro dos mundos, os mundos dentro de ti. E assim se dá uma metamorfose da realidade, que se avizinha aos olhos cada vez mais nitidamente. E assim surge uma mudança de paradigmas, novas leis.
Nem toda a gente consegue falar a linguagem da verdade e a pior mentira é aquela que contam a elas próprias, chegando ao ponto em que não sabem mais fazer a destrinça entre os dois conceitos, sendo projectadas para uma espiral que as enclausura por entre muros espessos, dos quais é quase impossível libertar-se.
Enredam-se na própria teia que constroem, que falseiam.
Passam pela vida como quem passa pelas brasas. Percorrem os mesmos trilhos, as mesmas artérias congestionadas, indo parar, inevitavelmente, aos lugares comuns.
Criam cancros sociais. Tornam-se fraudes. Fraudes que cambaleiam pelas ruas sem vida, vivendo sempre na desgraça. Vivem na  negação que criaram deles próprios.  São autómatos, verdadeiras máquinas programadas, cheias de funções estímulo-resposta. Vivem pela metade. Vivem pelo suficiente. Não ambicionam ser mais do que são. Diria mesmo, não têm coragem para ser mais. Submetem-se ao copo meio vazio, em vez de verem o copo meio cheio. Submetem-se à fatalidade, ao infortúnio, às desgraças.
Desvalorizam todos s pequenos gestos, todos os pequenos momentos, passando pela vida como uma sombra, como um resquício de vida. Não correm riscos. Não se afirmam. Não fazem a diferença. Não conseguem chegar verdadeiramente às outras pessoas, porque se prendem à futilidade.
Tu não quiseste entrar para esta estatística, para esta amostra de uma sociedade empobrecida, empoeirada de estereótipos, preconceitos, mentiras. A sociedade que cria um guião moral que toda a gente segue, como se a sociedade fosse a mãe do nosso próprio destino.
Quiseste a verdade numa altura em que ela está a cair em desuso. 



2011/07/16

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ipsis Verbis

Esbatem-se as nuvens num céu acinzentado. A chuva condensa-se e espreme-se num sumo transparente que escorre os céus, como tinta invisível. 
Dou um passo em frente vincando os dois pés na terra molhada até sentir as gotas cravejarem-me a pele. Ainda é noite, mas ao longe avizinham-se os primeiros raios de luz.
As minhas mãos seguram um velho caderno preto, desarticulado de tanto ser lido. Sem pensar duas vezes estendo as mãos e vejo, aos poucos, o bloco dissipar-se, numa fragilidade impressionante.
A capa cede e é levada pelo vento, que a arrasta pelo horizonte. As palavras são agora um conjunto de caracteres indecifráveis, levados pela chuva, como quem é levado pelo tempo.
Secretamente pensava que este exorcismo te ia trazer de volta, mas nada aconteceu. Vingou o silêncio que sempre existiu. Vingou a inexistência que sempre existiu.
Abro as duas mãos e deixo o papel perder a forma. Não me interessa mais o que lá estava escrito. Vejo as palavras perderem a vida que nunca tiveram. Elas juntam-se agora ao invisível de onde vieram, às cinzas da linguagem.
A tinta continua a escorrer, e fico à espera daquela sensação. Aquele desespero de voltar a compor tudo, de voltar atrás, de organizar estes pedaços de papel para que voltem à sua forma original e me transmitam algo como sempre o fizeram. Aquela sensação de morrer um pouco por dentro quando alguma coisa material que nos dizia muito se estraga, se parte. Aquela sensação de desespero que nos mostra a nossa vulnerabilidade, as nossas fragilidades, os nossos medos, as nossas inseguranças. O medo de perder. O medo de te perder.
Mas não.
Não sinto nada.
Absolutamente nada.
Sinto-me como se estivesse vazia, sendo apenas inundada pelo ar que respiro. 
Esta tinta preta que me mancha é o que resta das palavras. É o que resta dos prefácios, apenas. As palavras condensaram-se no tempo. Deixaram de constituir um significado plausível, uma construção lógica no complexo sistema cerebral humano. A minha mente desconectou-se dos léxicos, da lógica, de tudo. Vejo a morte ser consumada, até que não restem fragmentos visíveis daquele que, um dia foi o meu suporte. Não que tivesse qualquer importância vital. A sua ausência não me iria provocar uma falência orgânica que me tirasse o tutano da vida. Apenas eu me posso destruir, não delego essa tarefa a ninguém.
No fundo sabia que as palavras eram apenas isso. Nada mais. Não eram uma porta para a realidade, não eram uma semente. Eram apenas palavras. Daquelas que por muito complexas, muito distintas, muito enigmáticas, nunca iriam ganhar forma, nunca andariam por elas mesmas.
A chuva não pára, muito pelo contrário. Exibe a sua fúria, atingindo o solo com violência. O contraste perfeito com o que se passa dentro de mim. Eu continuo a resistir a essa chuva. Continuo com as mãos juntas, oferecendo à natureza pedaços do nada daquelas palavras.
Palavras que não me alimentam, não me nutrem, que não passam de ar quando verbalizadas e não passam de imagem que o cérebro descodifica e às quais atribui significado, o que torna as palavras pessoais consoante a interpretação.
Para mim estas palavras não são nada… Não têm sabor. Morrem em si próprias. Matam-se umas às outras, até que surjam outras que lhes sirvam de antídoto e lhes retirem o veneno. Sugam-se umas às outras, aniquilam-se para poder simplesmente existir no papel. São exibicionistas, são complicadas, são incompreensíveis. São um código que apenas os olhos certeiros conseguem descodificar. E os meus olhos não conseguem mais ver para além delas do tanto que se esforçaram para vislumbrar um sinal.
Observo silenciosamente o cenário que se apresenta, sem pensar em possíveis elogios fúnebres para o conteúdo destas palavras. Não é preciso dizer nada quando está tudo acabado.
As palavras voam, são livres, não são alcançáveis, não são palpáveis às minhas mãos e não se transformam em acções. Lembra-te disso.