domingo, 17 de julho de 2011

Egocentrismo

O egocentrismo. A desculpabilização do eu. Distúrbio de personalidade que faz ver o mundo girar à volta do individuo como se fosse o centro de tudo, o criador e destruidor. O centro gravitacional das massas e corpos que se movem. A lei que mantém tudo numa aparente normalidade, numa harmonia, numa sustentabilidade simulada. A origem. A supremacia, preponderância do Homem perante a natureza. Desejo inconsciente de domínio, de reconhecimento das almas fracas que deambulam no limbo, no conflito entre o que são e o que querem ser e, que em vez de olharem para dentro de si, tentando encontrar-se, culpabilizam os outros pela situação em que estão. Os outros são apenas serviçais à chamada.
Desestruturação. Perturbação. Conflito interior. A confusão de um espelho que reflecte uma realidade que não existe, que apenas é verdade aos olhos de quem a vê. A queda de uma criatura que vai passando pela vida de uma forma despreocupada, desresponsabilizada, porque, afinal, é a vida que lhe tem de estar grata por ela existir.
A solidão que invade os corpos que se deslocam por entre quatro paredes, por entre um mundo quadrado, confinado ao seu próprio espaço, a uma bola de sabão estacionária na atmosfera.
A satisfação pessoal e única. O olhar, unicamente, para o próprio umbigo. Egoísmo no sentido mais lato do termo. Criação de laços com os demais terráqueos para uso pessoal, sem trocas, sem intercâmbios, apenas para que eles lhe sirvam de trampolim, de escada, diria mesmo, de tapete, pois, claro. Um ser assim tão especial não pode pisar o mesmo chão que os conterrâneos, merece que os outros lhe amparem os passos, que os sustentem.
O egocêntrico tem particular apreço pela manipulação, porque é a única forma de ter os outros ao seu lado. Também gosta da humilhação para se sentir superior e perfeito face à escumalha que convive com ele neste mundo. Os outros pertencem-lhe. Sempre rédea curta.
Não existem limites morais nem éticos. O que interessa é conquistarem o que querem.
Palavras? Palavras são apenas sons que as cordas vocais moldam para acusar os outros, responsabilizá-los pelos erros que o emissor comete, porque, tristemente, pelo seu caminho surgem constantemente situações difíceis. Os outros é que não doseiam correctamente a quantidade de atenção a lhes dispensar, ficam sempre muito aquém da dose diária recomendada. Sim, porque estas almas pensam que assinam um contracto quando se relacionam com os outros. Uma relação não passa disso. Relação como reconhecimento mútuo de essência? O que é isso?!
 Assim, surgem os ressentimentos, uma das situações que mais adrenalina lhes dá, pois vai-lhes causar uma turbulência na sua massa cinzenta à procura de mais situações semelhantes, para justificar o seu estado de indignação. Provavelmente, se for daqueles egocêntricos mais fiéis à sua condição, pegará numa caneta e num bloco de notas e criará uma lista de situações, devidamente datada, para futuramente confrontar o ofensor. Vai delinear um plano, revendo vezes e vezes sem conta na sua mente, o que vai dizer, o que os outros vão responder, e assim, ficará noites e noites sem dormir, sofrendo, porque os outros não o entendem, não gostam dele, o usam. Pobres alminhas!
Se for um egocêntrico ainda mais perfeccionista, pode também treinar a sua expressão facial e corporal, de forma a que os outros, quando ouvirem os seus lamentos, percebam o estado combalido em que se encontra por causa das suas atitudes.
E quando chega o grande dia, sobem ao ringue. Golpeiam o adversário, primeiro lentamente, depois agressiva e ponderadamente. O adversário pode ripostar, pode defender-se, mas o atacante nunca se deixará vencer, mesmo que seja confrontado com as suas atitudes, com as suas faltas e defeitos, ele nunca reconhecerá que, como humano, também erra. O egocêntrico pensa que é feito a partir de uma costela de Deus, e por isso possui uma condição superior aos outros.
O combate pode surgir rapidamente, mas também podem encontrar-se egocêntricos que gostam de sofrer durante muito tempo, até que o veneno que eles próprios emitem lhe corroa todos os seus próprios locais, entupindo-lhes as artérias, asfixiando-lhes o coração.
Pode também acontecer que a confrontação não seja da sua responsabilidade, o que o leva a sentir-se extremamente ofendido, porque os outros estão a ser completamente injustos e não estão a ponderar aquilo que estão a dizer. Mas como é que os outros o ousam confrontar, tendo ele uma vida tão difícil, não recebendo nada de bom, tendo tantos problemas, sofrendo tanto com desmerecidos golpes da vida?
Os egocêntricos podiam ser ensaios perfeitos para contraporem o modelo Heliocêntrico de Copérnico, que coloca o sol no centro deste universo. Mas como é que o sol ousa sequer enfrentá-los?
O único problema desta espécie é que acaba sozinha, porque nem toda a gente consegue aguentar lidar com eles. Exigem muito e fazem pouco, e nas relações humanas estabelecem-se intercâmbios, damos e recebemos, normalmente na mesma proporção. Temos elos puros, desinteressados e isso é inconcebível para eles. Estabelecemos parâmetros emocionais e não racionais.
E por isto tudo estou farta de lidar com egocentrismo.


2011/07/17

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Chão

Caminho num mundo almofadado de tecidos gastos. É um espaço em iminente ruptura. É um chão que se vai abrir a qualquer momento, revelando o abismo que me cerca.
Vou acautelando os passos, vou atentando os meus movimentos. Do céu transpiram finas gotas de chuva, que aumentam o risco de quem, cá em baixo, se move por entre as ruas.
Sinto a ameaça apoderar-se de mim, fazendo da minha pulsação uma maratona. Envolvo-me em medo. Embrulho-me em silêncio. Tenho medo. Tenho medo do que pode acontecer. Tenho medo de perder o chão.
Olho à minha volta e sou incapaz de conter o impulso de me revoltar contra tudo e contra todos, contra a injustiça do que está a acontecer. Revoltar-me contra mim própria, porque não tenho controlo sobre nada.
Tentando refugiar o medo, percorro todos os meus lugares, até que encontro o eco que procurava. É nesse lugar onde a verdade emite uma ressonância incomparável que todos os meus sentidos se libertam, esquecendo tudo o que está a acontecer, calando todas as vozes das pessoas que passam por mim sem se aperceberem do que se está a passar e de todas aquelas que se acercam de mim, tentando assistir à minha prestes inexistência.
Respiro o ar húmido sofregamente, sentindo os pulmões em sofrimento. Choro lágrimas que pensava que não tinha. Agarro-me aos firmamentos que existem dentro de mim.
Vendo-me murchar, asseveram-me críticas, acelerando o processo que se adivinha quase concluído, como se eu me estivesse a dar por vencida.
Até que, inesperadamente, do céu cravado de nuvens, surge uma luz, primeiro ténue, que progressivamente ganha força até se mostrar toda a sua exuberância, que quase me cega.
O chão começa a sossegar.
Os vultos dos abutres afastam-se.
Invadida por forças que não julgava que me habitassem, levanto-me e assento firmemente os pés, que outrora cambaleavam num solo instável.
Os meus olhos são atravessados pelas cores do arco-íris, que parece ter sido pintado à mão. Cá dentro, o coração descansa, a verdade impera.
Olhando à volta, parece que nada se alterou, que o mundo não esteve para acabar. Parece que o este chão agora retalhado não esteve prestes a deixar de ser matéria e que eu não estive prestes a entregar-me nos braços do desconhecido.
Fechando os olhos, inspiro, como se há muito não inspirasse, sentido a rota percorrida pelo oxigénio até aos meus pulmões.
Fui salva pela consciência, esse lugar etéreo onde navego tranquilamente, onde a minha verdade reina. A verdade apenas reconhece na verdade. Apenas se abala com a verdade.
A verdade. Simplesmente. 

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Estrada


«Nem todos os caminhos são para todos os caminhantes.»
Goethe



As pernas tremem, mas avanço sem pensar duas vezes e sem olhar para trás.
Pelo meio dos meus passos, os meus pensamentos correm intensamente, divagando sobre que futuro me espera aqui. 
Estou onde devo estar. Disso tenho a certeza. Todos os pequenos desvios me trouxeram aqui, são pedaços de uma terra dilacerada que já não existe.
Lutei. Cai. Levantei-me. Continuei.
Chorei. Sangrei. Aprendi. Cicatrizei.
Tudo o que aconteceu, aconteceu por uma razão. O que não aconteceu também não foi em vão.
O tudo constrói-se do nada, do tempo que passou e que será. A vida arquitecta-se, desmonta-se. Os pedaços que ficam reorganizam-se e voltam a ser um todo, um ser, uma vida.
Às vezes é preciso o caos para gerar a ordem.
Às vezes o que queremos não é o melhor para nós.
Às vezes não podemos ser donos da mão que maneja o destino.
Às vezes é preciso perder o controlo e deixar-se ir até onde a vida nos levar.
Não tenho medo de perder. Nada me pode tirar o chão em que piso e deixar-me num abismo. Não tenho medo. Calejei os sentimentos e cravei na pele a força necessária para enfrentar o desafio. Muni-me de uma sólida armadura que me sustenta como se fosse o meu cerne, o meu alicerce, a minha base. Matéria indestrutível, inquebrável, inabalável.
Rasguei as redes que me prendiam, corri por um caminho que desconhecia e aventurei-me na escuridão, deixando todas as luzes laterais apagarem-se. O amanhã acontece às escuras. Sempre. Por isso aprendi a velar a escuridão.
Deixei de ser radar desnorteado, mapa sem coordenadas. Aceitei não ser ponto de chegada, nem ponto de partida. Interiorizei que não tenho começo nem término. Sou um fotograma lento de tempo remoto. Cessei as guerras de antíteses.
Aceitei as incertezas e agarrei-as como toda a força que possuo, pois são elas as pistas para as convicções.
Mas o que seria se tudo fosse absoluto e não relativo?
Não importa o ‘como’ nem o ‘quando’. Importa chegar.


Transportada de novo para o meu novo cenário, vejo os meus passos mecânicos, automáticos, chegarem velozmente ao seu destino.
A distância encurta-se e a mente esvazia-se, dissipando alguns resquícios de pensamentos turvos.
A realidade mostra-se numa porta, que abro sem hesitar.
Cheguei.


2011/07/11

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Cidade

E num segundo tudo se transforma em caos. Em pedaços que já não encaixam, que já não fazem sentido, que não se pertencem.
Asfixiada com tudo o que está a acontecer, saio para a rua, decidida a procurar um sentido.
Não quero olhar para trás. Por enquanto.
Desço as escadas, avançando em vários lanços os degraus. Bato sonoramente a porta deparando-me com a cidade, com a normalidade. Engraçado como tudo continua na sua imperfeita harmonia, enquanto a desordem surge para desequilibrar o meu epicentro.
E com a certeza de que não tem nada a perder, lanço-me por entre a multidão que inunda as ruas. Caminho por entre eles, sendo, por várias vezes, atingida pelos seus encontrões, mas avanço ao meu ritmo, esforçando-me por encontrar-me no meio deles. Literalmente.
Perscrutando os rostos, procuro o que fez aqueles que por mim passam serem o que são. Qual o seu passado? O que estão a viver?
Fujo dos estereótipos e tento indagar origens.
Pelo caminho sou acompanhada de fios de conversas, vozes fundidas, gestos imperceptíveis. Guerra. Paz. Amor. Ódio. Tudo condensado num único lugar.
A cidade é grande. É um mundo, onde as luzes não são guia, mas sim mostradores passivos da ostentação de um sociedade que se foca nos valores imediatos, na ascensão prodigiosa mas mal sustentada. São paredes ocas de betão erguidas numa perfeição arquitectónica, impondo-se, insurgindo-se perante a pequenez humana.
A cidade é um palco onde os actores principais se mostram ausentes de marcas temporais, emergindo rapidamente pelas ruas com passos velozes, num vão sopro de esperança de vitória contra o tempo.
São muitos aqueles que vejo a correr para um futuro que se aproxima a cada esquina, com a pressa de chegar a nenhum lado e com o rosto colado ao chão. São sombras de vida. São marionetas vivas. São almas sem alma. São comandos remotos.
São aqueles que deixam a ignição avançar por eles, a vida encontrá-los, mas que se perdem porque nunca tiveram rumo.
Ao fundo, começo a ouvir uma música, e por momentos, foco-me apenas nesse som, como se fosse crucial para a minha sobrevivência. E é esse pequeno som que me faz apagar a cidade, eliminando os sons dos carros, autocarros e pessoas. É um som que reconforta, como se atingisse um qualquer espaço de mim de uma forma certeira.
A noite que entretanto manchou o céu instalou uma lua que brilha magnanimamente por entre nuvens espessas.  
Começa a chover e os transeuntes começam a ser amparados pelos guarda-chuvas que pintam a cidade de cor. Eu permaneço imóvel, indiferente à nova condição meteorológica. Prefiro sentir na pele as gotas geladas, que caem como lanças afiadas. Um sismo de sentimentos que aflora.
E eis que um pequeno gesto me devolve a mim mesma.
E eu sinto-me.
Encontro-me.
O meu caos interior deixa de ter significado.
Volto a ser tudo o que fui.
Volto a sentir tudo o que sentia.
E eis que sinto uma mão tocar-me o ombro.
A tua mão.



2011/07/08