segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Emersão

Estávamos reunidos à volta da mesa vermelha numa espera que parecia interminável. À nossa volta o ar mostrava-se pesado, quase que irrespirável.
Entre goles de café, íamos esperando o que nos tinhas para dizer. Tinhas estampado no rosto a urgência de falar, o que nunca tinha visto em ti. Desenhavas um grito mudo que ecoava até às nossas mentes. Essa mensagem não verbal enregelou-me o coração, como se absorvesse as palavras invisíveis que lançavas. Senti um sufoco na garganta, mas esse sufoco era por saber o quanto este momento significava para ti.
Hesitaste.
Voltaste a hesitar.
Antes de verbalizares, sequer, aquilo que ansiavas por nos dizer, a minha cabeça formou as palavras que te iam sair pela boca, quase como se fossem projectadas por mim, que vociferas numa perfeita sintonia.
Falaste.
Lançaste as palavras de uma forma pausada, deliberada e consciente. Mais do que as palavras, o tom de voz cunhou os vocábulos , conferindo-lhe um carácter grave.
Desviei o olhar por segundos e voltei a encarar-te, só que desta vez, vi-te como nunca te tinha visto. Encostaste-te à cadeira, com alívio, após teres expulsado do mais profundo de ti, uma verdade prisioneira. A partir dali, tudo seria diferente. Tudo era uma nova etapa, uma nova porta que se abria e para a qual não sabias com que contar, mas o que mais me impressionou foi a tua determinação inabalável.
Faltaram-me as palavras. Toda a gente falou, mas eu remeti-me ao silêncio, provavelmente no único momento em que devia fazer com que as palavras deslizassem pela boca. Mas elas morreram na fonte. Queria dizer-te tanto, mas não consegui estabelecer uma sequência mental com tudo o que tinha para exprimir.
Cá dentro os pensamentos deambulavam sobre o teu eixo de coragem e estabeleci uma breve viagem interior. Tentei pôr-me na tua pele, entrar nas tuas memórias e mudar a perspectiva. Passar a ser o sujeito activo, passar a ser tu.
Um segredo corrói, deixa mazelas. Incapacita. Desmorona o organismo como um baralho de cartas, mas tu estavas a dar o peito às balas. Nem por um segundo vi fraqueza nos teus olhos.
Não reclamavas a nossa compreensão ou aceitação. Reclamavas antes a tua própria aceitação. Reclamavas, legitimamente, a verdade sobre ti. Apenas.
O mundo, na sua condição, não conhecia os seus subordinados, os mundos dentro dos mundos, os mundos dentro de ti. E assim se dá uma metamorfose da realidade, que se avizinha aos olhos cada vez mais nitidamente. E assim surge uma mudança de paradigmas, novas leis.
Nem toda a gente consegue falar a linguagem da verdade e a pior mentira é aquela que contam a elas próprias, chegando ao ponto em que não sabem mais fazer a destrinça entre os dois conceitos, sendo projectadas para uma espiral que as enclausura por entre muros espessos, dos quais é quase impossível libertar-se.
Enredam-se na própria teia que constroem, que falseiam.
Passam pela vida como quem passa pelas brasas. Percorrem os mesmos trilhos, as mesmas artérias congestionadas, indo parar, inevitavelmente, aos lugares comuns.
Criam cancros sociais. Tornam-se fraudes. Fraudes que cambaleiam pelas ruas sem vida, vivendo sempre na desgraça. Vivem na  negação que criaram deles próprios.  São autómatos, verdadeiras máquinas programadas, cheias de funções estímulo-resposta. Vivem pela metade. Vivem pelo suficiente. Não ambicionam ser mais do que são. Diria mesmo, não têm coragem para ser mais. Submetem-se ao copo meio vazio, em vez de verem o copo meio cheio. Submetem-se à fatalidade, ao infortúnio, às desgraças.
Desvalorizam todos s pequenos gestos, todos os pequenos momentos, passando pela vida como uma sombra, como um resquício de vida. Não correm riscos. Não se afirmam. Não fazem a diferença. Não conseguem chegar verdadeiramente às outras pessoas, porque se prendem à futilidade.
Tu não quiseste entrar para esta estatística, para esta amostra de uma sociedade empobrecida, empoeirada de estereótipos, preconceitos, mentiras. A sociedade que cria um guião moral que toda a gente segue, como se a sociedade fosse a mãe do nosso próprio destino.
Quiseste a verdade numa altura em que ela está a cair em desuso. 



2011/07/16

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ipsis Verbis

Esbatem-se as nuvens num céu acinzentado. A chuva condensa-se e espreme-se num sumo transparente que escorre os céus, como tinta invisível. 
Dou um passo em frente vincando os dois pés na terra molhada até sentir as gotas cravejarem-me a pele. Ainda é noite, mas ao longe avizinham-se os primeiros raios de luz.
As minhas mãos seguram um velho caderno preto, desarticulado de tanto ser lido. Sem pensar duas vezes estendo as mãos e vejo, aos poucos, o bloco dissipar-se, numa fragilidade impressionante.
A capa cede e é levada pelo vento, que a arrasta pelo horizonte. As palavras são agora um conjunto de caracteres indecifráveis, levados pela chuva, como quem é levado pelo tempo.
Secretamente pensava que este exorcismo te ia trazer de volta, mas nada aconteceu. Vingou o silêncio que sempre existiu. Vingou a inexistência que sempre existiu.
Abro as duas mãos e deixo o papel perder a forma. Não me interessa mais o que lá estava escrito. Vejo as palavras perderem a vida que nunca tiveram. Elas juntam-se agora ao invisível de onde vieram, às cinzas da linguagem.
A tinta continua a escorrer, e fico à espera daquela sensação. Aquele desespero de voltar a compor tudo, de voltar atrás, de organizar estes pedaços de papel para que voltem à sua forma original e me transmitam algo como sempre o fizeram. Aquela sensação de morrer um pouco por dentro quando alguma coisa material que nos dizia muito se estraga, se parte. Aquela sensação de desespero que nos mostra a nossa vulnerabilidade, as nossas fragilidades, os nossos medos, as nossas inseguranças. O medo de perder. O medo de te perder.
Mas não.
Não sinto nada.
Absolutamente nada.
Sinto-me como se estivesse vazia, sendo apenas inundada pelo ar que respiro. 
Esta tinta preta que me mancha é o que resta das palavras. É o que resta dos prefácios, apenas. As palavras condensaram-se no tempo. Deixaram de constituir um significado plausível, uma construção lógica no complexo sistema cerebral humano. A minha mente desconectou-se dos léxicos, da lógica, de tudo. Vejo a morte ser consumada, até que não restem fragmentos visíveis daquele que, um dia foi o meu suporte. Não que tivesse qualquer importância vital. A sua ausência não me iria provocar uma falência orgânica que me tirasse o tutano da vida. Apenas eu me posso destruir, não delego essa tarefa a ninguém.
No fundo sabia que as palavras eram apenas isso. Nada mais. Não eram uma porta para a realidade, não eram uma semente. Eram apenas palavras. Daquelas que por muito complexas, muito distintas, muito enigmáticas, nunca iriam ganhar forma, nunca andariam por elas mesmas.
A chuva não pára, muito pelo contrário. Exibe a sua fúria, atingindo o solo com violência. O contraste perfeito com o que se passa dentro de mim. Eu continuo a resistir a essa chuva. Continuo com as mãos juntas, oferecendo à natureza pedaços do nada daquelas palavras.
Palavras que não me alimentam, não me nutrem, que não passam de ar quando verbalizadas e não passam de imagem que o cérebro descodifica e às quais atribui significado, o que torna as palavras pessoais consoante a interpretação.
Para mim estas palavras não são nada… Não têm sabor. Morrem em si próprias. Matam-se umas às outras, até que surjam outras que lhes sirvam de antídoto e lhes retirem o veneno. Sugam-se umas às outras, aniquilam-se para poder simplesmente existir no papel. São exibicionistas, são complicadas, são incompreensíveis. São um código que apenas os olhos certeiros conseguem descodificar. E os meus olhos não conseguem mais ver para além delas do tanto que se esforçaram para vislumbrar um sinal.
Observo silenciosamente o cenário que se apresenta, sem pensar em possíveis elogios fúnebres para o conteúdo destas palavras. Não é preciso dizer nada quando está tudo acabado.
As palavras voam, são livres, não são alcançáveis, não são palpáveis às minhas mãos e não se transformam em acções. Lembra-te disso.

 

domingo, 17 de julho de 2011

Egocentrismo

O egocentrismo. A desculpabilização do eu. Distúrbio de personalidade que faz ver o mundo girar à volta do individuo como se fosse o centro de tudo, o criador e destruidor. O centro gravitacional das massas e corpos que se movem. A lei que mantém tudo numa aparente normalidade, numa harmonia, numa sustentabilidade simulada. A origem. A supremacia, preponderância do Homem perante a natureza. Desejo inconsciente de domínio, de reconhecimento das almas fracas que deambulam no limbo, no conflito entre o que são e o que querem ser e, que em vez de olharem para dentro de si, tentando encontrar-se, culpabilizam os outros pela situação em que estão. Os outros são apenas serviçais à chamada.
Desestruturação. Perturbação. Conflito interior. A confusão de um espelho que reflecte uma realidade que não existe, que apenas é verdade aos olhos de quem a vê. A queda de uma criatura que vai passando pela vida de uma forma despreocupada, desresponsabilizada, porque, afinal, é a vida que lhe tem de estar grata por ela existir.
A solidão que invade os corpos que se deslocam por entre quatro paredes, por entre um mundo quadrado, confinado ao seu próprio espaço, a uma bola de sabão estacionária na atmosfera.
A satisfação pessoal e única. O olhar, unicamente, para o próprio umbigo. Egoísmo no sentido mais lato do termo. Criação de laços com os demais terráqueos para uso pessoal, sem trocas, sem intercâmbios, apenas para que eles lhe sirvam de trampolim, de escada, diria mesmo, de tapete, pois, claro. Um ser assim tão especial não pode pisar o mesmo chão que os conterrâneos, merece que os outros lhe amparem os passos, que os sustentem.
O egocêntrico tem particular apreço pela manipulação, porque é a única forma de ter os outros ao seu lado. Também gosta da humilhação para se sentir superior e perfeito face à escumalha que convive com ele neste mundo. Os outros pertencem-lhe. Sempre rédea curta.
Não existem limites morais nem éticos. O que interessa é conquistarem o que querem.
Palavras? Palavras são apenas sons que as cordas vocais moldam para acusar os outros, responsabilizá-los pelos erros que o emissor comete, porque, tristemente, pelo seu caminho surgem constantemente situações difíceis. Os outros é que não doseiam correctamente a quantidade de atenção a lhes dispensar, ficam sempre muito aquém da dose diária recomendada. Sim, porque estas almas pensam que assinam um contracto quando se relacionam com os outros. Uma relação não passa disso. Relação como reconhecimento mútuo de essência? O que é isso?!
 Assim, surgem os ressentimentos, uma das situações que mais adrenalina lhes dá, pois vai-lhes causar uma turbulência na sua massa cinzenta à procura de mais situações semelhantes, para justificar o seu estado de indignação. Provavelmente, se for daqueles egocêntricos mais fiéis à sua condição, pegará numa caneta e num bloco de notas e criará uma lista de situações, devidamente datada, para futuramente confrontar o ofensor. Vai delinear um plano, revendo vezes e vezes sem conta na sua mente, o que vai dizer, o que os outros vão responder, e assim, ficará noites e noites sem dormir, sofrendo, porque os outros não o entendem, não gostam dele, o usam. Pobres alminhas!
Se for um egocêntrico ainda mais perfeccionista, pode também treinar a sua expressão facial e corporal, de forma a que os outros, quando ouvirem os seus lamentos, percebam o estado combalido em que se encontra por causa das suas atitudes.
E quando chega o grande dia, sobem ao ringue. Golpeiam o adversário, primeiro lentamente, depois agressiva e ponderadamente. O adversário pode ripostar, pode defender-se, mas o atacante nunca se deixará vencer, mesmo que seja confrontado com as suas atitudes, com as suas faltas e defeitos, ele nunca reconhecerá que, como humano, também erra. O egocêntrico pensa que é feito a partir de uma costela de Deus, e por isso possui uma condição superior aos outros.
O combate pode surgir rapidamente, mas também podem encontrar-se egocêntricos que gostam de sofrer durante muito tempo, até que o veneno que eles próprios emitem lhe corroa todos os seus próprios locais, entupindo-lhes as artérias, asfixiando-lhes o coração.
Pode também acontecer que a confrontação não seja da sua responsabilidade, o que o leva a sentir-se extremamente ofendido, porque os outros estão a ser completamente injustos e não estão a ponderar aquilo que estão a dizer. Mas como é que os outros o ousam confrontar, tendo ele uma vida tão difícil, não recebendo nada de bom, tendo tantos problemas, sofrendo tanto com desmerecidos golpes da vida?
Os egocêntricos podiam ser ensaios perfeitos para contraporem o modelo Heliocêntrico de Copérnico, que coloca o sol no centro deste universo. Mas como é que o sol ousa sequer enfrentá-los?
O único problema desta espécie é que acaba sozinha, porque nem toda a gente consegue aguentar lidar com eles. Exigem muito e fazem pouco, e nas relações humanas estabelecem-se intercâmbios, damos e recebemos, normalmente na mesma proporção. Temos elos puros, desinteressados e isso é inconcebível para eles. Estabelecemos parâmetros emocionais e não racionais.
E por isto tudo estou farta de lidar com egocentrismo.


2011/07/17

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Chão

Caminho num mundo almofadado de tecidos gastos. É um espaço em iminente ruptura. É um chão que se vai abrir a qualquer momento, revelando o abismo que me cerca.
Vou acautelando os passos, vou atentando os meus movimentos. Do céu transpiram finas gotas de chuva, que aumentam o risco de quem, cá em baixo, se move por entre as ruas.
Sinto a ameaça apoderar-se de mim, fazendo da minha pulsação uma maratona. Envolvo-me em medo. Embrulho-me em silêncio. Tenho medo. Tenho medo do que pode acontecer. Tenho medo de perder o chão.
Olho à minha volta e sou incapaz de conter o impulso de me revoltar contra tudo e contra todos, contra a injustiça do que está a acontecer. Revoltar-me contra mim própria, porque não tenho controlo sobre nada.
Tentando refugiar o medo, percorro todos os meus lugares, até que encontro o eco que procurava. É nesse lugar onde a verdade emite uma ressonância incomparável que todos os meus sentidos se libertam, esquecendo tudo o que está a acontecer, calando todas as vozes das pessoas que passam por mim sem se aperceberem do que se está a passar e de todas aquelas que se acercam de mim, tentando assistir à minha prestes inexistência.
Respiro o ar húmido sofregamente, sentindo os pulmões em sofrimento. Choro lágrimas que pensava que não tinha. Agarro-me aos firmamentos que existem dentro de mim.
Vendo-me murchar, asseveram-me críticas, acelerando o processo que se adivinha quase concluído, como se eu me estivesse a dar por vencida.
Até que, inesperadamente, do céu cravado de nuvens, surge uma luz, primeiro ténue, que progressivamente ganha força até se mostrar toda a sua exuberância, que quase me cega.
O chão começa a sossegar.
Os vultos dos abutres afastam-se.
Invadida por forças que não julgava que me habitassem, levanto-me e assento firmemente os pés, que outrora cambaleavam num solo instável.
Os meus olhos são atravessados pelas cores do arco-íris, que parece ter sido pintado à mão. Cá dentro, o coração descansa, a verdade impera.
Olhando à volta, parece que nada se alterou, que o mundo não esteve para acabar. Parece que o este chão agora retalhado não esteve prestes a deixar de ser matéria e que eu não estive prestes a entregar-me nos braços do desconhecido.
Fechando os olhos, inspiro, como se há muito não inspirasse, sentido a rota percorrida pelo oxigénio até aos meus pulmões.
Fui salva pela consciência, esse lugar etéreo onde navego tranquilamente, onde a minha verdade reina. A verdade apenas reconhece na verdade. Apenas se abala com a verdade.
A verdade. Simplesmente. 

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Estrada


«Nem todos os caminhos são para todos os caminhantes.»
Goethe



As pernas tremem, mas avanço sem pensar duas vezes e sem olhar para trás.
Pelo meio dos meus passos, os meus pensamentos correm intensamente, divagando sobre que futuro me espera aqui. 
Estou onde devo estar. Disso tenho a certeza. Todos os pequenos desvios me trouxeram aqui, são pedaços de uma terra dilacerada que já não existe.
Lutei. Cai. Levantei-me. Continuei.
Chorei. Sangrei. Aprendi. Cicatrizei.
Tudo o que aconteceu, aconteceu por uma razão. O que não aconteceu também não foi em vão.
O tudo constrói-se do nada, do tempo que passou e que será. A vida arquitecta-se, desmonta-se. Os pedaços que ficam reorganizam-se e voltam a ser um todo, um ser, uma vida.
Às vezes é preciso o caos para gerar a ordem.
Às vezes o que queremos não é o melhor para nós.
Às vezes não podemos ser donos da mão que maneja o destino.
Às vezes é preciso perder o controlo e deixar-se ir até onde a vida nos levar.
Não tenho medo de perder. Nada me pode tirar o chão em que piso e deixar-me num abismo. Não tenho medo. Calejei os sentimentos e cravei na pele a força necessária para enfrentar o desafio. Muni-me de uma sólida armadura que me sustenta como se fosse o meu cerne, o meu alicerce, a minha base. Matéria indestrutível, inquebrável, inabalável.
Rasguei as redes que me prendiam, corri por um caminho que desconhecia e aventurei-me na escuridão, deixando todas as luzes laterais apagarem-se. O amanhã acontece às escuras. Sempre. Por isso aprendi a velar a escuridão.
Deixei de ser radar desnorteado, mapa sem coordenadas. Aceitei não ser ponto de chegada, nem ponto de partida. Interiorizei que não tenho começo nem término. Sou um fotograma lento de tempo remoto. Cessei as guerras de antíteses.
Aceitei as incertezas e agarrei-as como toda a força que possuo, pois são elas as pistas para as convicções.
Mas o que seria se tudo fosse absoluto e não relativo?
Não importa o ‘como’ nem o ‘quando’. Importa chegar.


Transportada de novo para o meu novo cenário, vejo os meus passos mecânicos, automáticos, chegarem velozmente ao seu destino.
A distância encurta-se e a mente esvazia-se, dissipando alguns resquícios de pensamentos turvos.
A realidade mostra-se numa porta, que abro sem hesitar.
Cheguei.


2011/07/11

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Cidade

E num segundo tudo se transforma em caos. Em pedaços que já não encaixam, que já não fazem sentido, que não se pertencem.
Asfixiada com tudo o que está a acontecer, saio para a rua, decidida a procurar um sentido.
Não quero olhar para trás. Por enquanto.
Desço as escadas, avançando em vários lanços os degraus. Bato sonoramente a porta deparando-me com a cidade, com a normalidade. Engraçado como tudo continua na sua imperfeita harmonia, enquanto a desordem surge para desequilibrar o meu epicentro.
E com a certeza de que não tem nada a perder, lanço-me por entre a multidão que inunda as ruas. Caminho por entre eles, sendo, por várias vezes, atingida pelos seus encontrões, mas avanço ao meu ritmo, esforçando-me por encontrar-me no meio deles. Literalmente.
Perscrutando os rostos, procuro o que fez aqueles que por mim passam serem o que são. Qual o seu passado? O que estão a viver?
Fujo dos estereótipos e tento indagar origens.
Pelo caminho sou acompanhada de fios de conversas, vozes fundidas, gestos imperceptíveis. Guerra. Paz. Amor. Ódio. Tudo condensado num único lugar.
A cidade é grande. É um mundo, onde as luzes não são guia, mas sim mostradores passivos da ostentação de um sociedade que se foca nos valores imediatos, na ascensão prodigiosa mas mal sustentada. São paredes ocas de betão erguidas numa perfeição arquitectónica, impondo-se, insurgindo-se perante a pequenez humana.
A cidade é um palco onde os actores principais se mostram ausentes de marcas temporais, emergindo rapidamente pelas ruas com passos velozes, num vão sopro de esperança de vitória contra o tempo.
São muitos aqueles que vejo a correr para um futuro que se aproxima a cada esquina, com a pressa de chegar a nenhum lado e com o rosto colado ao chão. São sombras de vida. São marionetas vivas. São almas sem alma. São comandos remotos.
São aqueles que deixam a ignição avançar por eles, a vida encontrá-los, mas que se perdem porque nunca tiveram rumo.
Ao fundo, começo a ouvir uma música, e por momentos, foco-me apenas nesse som, como se fosse crucial para a minha sobrevivência. E é esse pequeno som que me faz apagar a cidade, eliminando os sons dos carros, autocarros e pessoas. É um som que reconforta, como se atingisse um qualquer espaço de mim de uma forma certeira.
A noite que entretanto manchou o céu instalou uma lua que brilha magnanimamente por entre nuvens espessas.  
Começa a chover e os transeuntes começam a ser amparados pelos guarda-chuvas que pintam a cidade de cor. Eu permaneço imóvel, indiferente à nova condição meteorológica. Prefiro sentir na pele as gotas geladas, que caem como lanças afiadas. Um sismo de sentimentos que aflora.
E eis que um pequeno gesto me devolve a mim mesma.
E eu sinto-me.
Encontro-me.
O meu caos interior deixa de ter significado.
Volto a ser tudo o que fui.
Volto a sentir tudo o que sentia.
E eis que sinto uma mão tocar-me o ombro.
A tua mão.



2011/07/08

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Batalha

Entro no sótão onde a luz lúgubre ilumina as páginas caídas de um guião que não chegou a realizar-se.
Acto por acto, cena por cena, escrevias, com uma letra cuidada, todos os passos que as personagens à tua volta teriam de dar para pertencerem ao teu pequeno e medíocre mundo.
Eram palavras pensadas, saídas de um lugar de ti que não sei identificar. Construíste fundamentos  em terrenos de lama, onde crescia o teu preconceito e as tuas ideias tão já ultrapassadas.
Como um juiz, ditavas o ‘certo’, o ‘errado’, o ‘bonito’, o ‘feio’, o ‘aceitável’, o ‘inaceitável’.
Pensavas ser Deus, e como tal, tinhas de servir a humanidade, proclamando a perfeição que julgavas ver.
Puxo uma cadeira e fico, simplesmente, a observar este grotesco cenário. Sou levada aos lugares onde me aprisionaste com medos, que me fizeram cair, como um baralho de cartas dentro de mim mesma.
Desterraste-me. Exilaste-me.
O meu mundo sempre foi um lugar estranho para ti. Era incompreensível aos teus olhos. Por isso, tentavas cegar-me e guiar-me para os limites bem contornados da tua insignificante terra, onde as ideias eram inférteis e os sentimentos apareciam num solo seco e oco a que chamavas coração.
Alugaste o meu corpo e ocupaste-o durante demasiado tempo, deixando pequenas cicatrizes em cada esquina, que se transformaram, com o passar do tempo, em memórias taciturnas de alguém que já não sou.
As palavras atingiam-me como flechas. Ouvia, sílaba a sílaba, frase a frase, parágrafo a parágrafo, os dardos que ias lançando. E são essas mesmas flechas que, tiradas uma a uma, são o meu troféu de vitória.
Como um esboço, ias-me limando as arestas que pensavas pontiagudas e desajustadas ao desenho final e o meu carvão ia-se esbatendo, dissolvendo-se nas tuas mãos. Ajustes e mais ajustes. Acertos e mais acertos.
No final, tornei-me um esquisso estranho, recheado de traços indefinidos que se transformavam num conjunto abstracto de uma existência que não existia.
Envolvi-me de mais na tua teia, no teu mar, mas resolvi emergir.
Muni-me e fiz-me a uma guerra só minha. Resolvi ser soldado e enfrentar-te. Tu e eu. Apenas. Tu e eu em batalha.
Recolhi todos os teus pontos fracos, porque aprendi a ouvir-te durante muito tempo. E eu fui guardando tudo. Guardei tudo num baú da minha mente. Fui coleccionando os teus esconderijos dentro de mim e, ao pouco, fui abrindo as tuas portas. As portas davam para uma casa com fracos alicerces, que com uma pequena brisa, se iam desmoronando. Verdadeiros castelos no ar. Espaços vazios.
Lentamente o teu império foi-se derrubando e perdeste a coroa para mim.
Uma a uma recolhi as flechas longas e afiadas que me cruzaram o peito e declarei-me dona do meu reino.
Aos poucos, fui sarando e o teu veneno foi saindo de mim. (Sabes que o veneno é sempre uma estratégia de defesa?)
Fui erguendo as cicatrizes da vitória, que me acompanham sempre, porque são parte de mim. De um processo. De uma etapa. De uma guerra.
Venci.
Venci-te.
E hoje, ao ver as folhas que deixaste para trás na tua fuga, não consigo deixar de sorrir.
Abro a gaveta da secretária e pego numa caixa de fósforos, que abro demoradamente. Vou pensando num tempo que já não existe mais, numa rede que já foi desmontada, numa mente que já cicatrizou.
Esfrego o fósforo até ouvir o som seco dar origem a uma chama gloriosa. Atiro o fogo aos escritos, pedaços de uma vida, que avidamente se transformam em cinzas, como se há muito ansiassem este desfecho. Vou observando a matéria transformar-se em cinza e dentro de mim renasce a Fénix há muito perdida. 

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Noite

Estou no velho baloiço que sempre me serviu de refúgio para bambolear os meus pensamentos. Vejo a noite dançar no meu campo de visão. Não sei que horas são. Estou livre de qualquer referência temporal. Apenas estou neste momento, neste eterno momento.
Sinto uma leve brisa tocar-me o rosto, como uma presença invisível. Lá em cima, o céu pinta-se do mais escuro dos azuis e faz-se acompanhar de uma lua cheia que dá um toque de magia a esta imensidão, onde se pintam, com menos destaque, pequenas estrelas que embelezam a mais perfeita das noites.
Cá em baixo, mergulho nessa infinidade, nesse paraíso tão terreno, nesse espaço tão profundo como a nossa mente, onde acolhemos todos os laços de uma vida.
E vou pensando…
Ao pensar, parece que as ideias se encadeiam formando um longo carrossel, que anda às voltas no palco da mente, numa espiral interminável de imagens.
Penso…
Penso…
E continuo a pensar…
Deixo-me ir. Deixo-me levar por essa onda.
Não procuro nada, apenas quero libertar pensamentos, deixá-los fluir. Deixá-los existir. Deixá-los sair como se há muito estivessem enclausurados. E eles fluem como correntes, que se encadeiam em elos invisíveis, em fios condutores, sem a censura do ‘certo’ e do ‘errado’. Eles são. Ponto.
No entanto, eles vão sempre aportar ao mesmo mar…

Enfrento turvos fragmentos de memória. Pedaços recortados e exilados numa esquina do inconsciente, como um tesouro que naufraga.
Procuro as fotografias que os meus olhos captaram e revelo-as na minha mente, num processo exaustivo na busca de ti.
Uma vez…
Outra vez…
Mais uma vez…
Sempre.
Pensar em ti é pôr o sistema sanguíneo em ebulição, percorrendo as minhas veias até encontrarem o órgão que te pertence, e, que aos poucos, me abandona de saudade.
É sentir que o meu próprio corpo não me pertence e obedece apenas às tuas leis. À tua presença. À tua ausência.
Dedilho as palavras mudas, desprovidas de significado, ocas.
Vejo os momentos em que te procuro nas notas soltas, quando harpejo uma música imaginária, inacabada, sem ritmo nem compasso. As mãos dançam no piano, mas não encontram mestre que as ensine a melodia que deixaste em mim.
E percorro os fios da tua existência, que a minha memória se encarrega de esbater. Eu tento colorir as imagens que imprimiste em mim, mas, tal como a distância, o meu tinteiro vai perdendo tinta e, aos poucos, rouba-me os meus próprios momentos.
Mergulho no teu mundo para me esquecer do outro mundo em que apoio os pés. Sinto-me imbuída a rodopiar no teu centro gravitacional e ouvir o teu coração bater. Apenas.
Fico em silêncio até encontrar a frequência do teu timbre ao meu ouvido. Por vezes, consigo sentir a brisa da tua voz tocar-me a pele. E eu ardo. Queimo-me ao abrir os olhos e ver que não estás, que este espaço permanece vazio e alheio. Que continuo abrigada pelo mesmo céu e sentada no mesmo baloiço.
Vejo-te muito aquém da tua perfeição, num desenho que foi perdendo traços. Vejo-te vaguear num lugar só teu, olhando o mundo através do mais puro dos castanhos.  
E relembro aquele pensamento que me fugiu e que se materializou. Aquele impulso que me levou a ver-te surgir e me fazer ficar congelada numa realidade que sonhei vezes sem conta. Apesar disso, senti-me incapaz de fazer alguma coisa, como se o meu corpo e mente bloqueassem quando estão ao pé de ti. Fiquei aprisionada num silêncio sepulcral, que me envolveu nos seus ténues braços e me foi asfixiando.

 E é aí permaneço até que o meu balançar se desvaneça…
Até me fundir com uma noite que está prestes a conhecer o amanhecer…
Até que as minhas memórias se tornem reais…

domingo, 5 de junho de 2011

Silêncio

Cada vez que tento abrir o cadeado do meu próprio silêncio, ele fecha-se mais ainda em mim. Apodera-se de todos os meus lugares, de todos os meus cantos, de todos os meus espelhos convexos. Sou o som mascarado de nada.
Esse silêncio é um descanso cruel das palavras. Palavras essas que se abrigam na minha mente, esperando que o silêncio preencha os seus espaços em branco.
O silêncio é uma tentativa. É o inaudível a tentar expressar-se, a fundir-se com a sua outra metade. São dois pólos contrários que se procuram e se completam.
As palavras formam-se no ar dos pensamentos. Formam-se e deformam-se num jogo constante de incertezas. Desvendam-se. Emendam-se.  Moldam-se. Significam-se.
Rodopiam numa esfera acrílica, que descreve uma escala de cores diluindo-se numa textura rendilhada.
Perco-me no meio dessa rede, desse léxico que se mostra inexpressável e insensato.
O que te quero dizer é um mistério. São códigos. São senhas. São segredos guardados num baú. São palavras que o dicionário ainda não alberga.  
No meio desse céu preenchido de interrogações, voa a certeza de que o silêncio torna tudo possível enquanto dura. O silêncio tem em si o tudo e o nada, o sim e o não, a noite e o dia, o céu e a terra, o possível e o impossível.
O silêncio cumpre a sua função escrupulosamente.
Ainda assim, gostava de te dizer tudo, fazendo deslizar os vocábulos em longos parágrafos para me aproximar de uma descrição perfeita de tudo o que se passa, mas cheguei à conclusão que o ar iria esbater as minhas palavras e levava-las para longe, como se nunca me tivessem pertencido. O oxigénio iria corroer os alicerces frágeis que as sustentam e tudo iria desaparecer como se nunca tivesse existido.
O silêncio.
Esse pretensioso lugar!
Esse espírito que mata as palavras e se apodera dos seus corpos para se expressar.
Esse grito mudo que solto de um lugar bem dentro de mim e que mesmo assim não consegues ouvir…

domingo, 29 de maio de 2011

Tempo

Manejo por entre dedos cuidadosos a preciosidade do tempo. A velha ampulheta repousa nas minhas mãos.
Faço com que os pequenos fios de areia deslizem por entre as paredes finas de vidro. No início, parece que as areias se demoram no estreitamento e que, quando começam a escassear, correm velozes perseguindo as leis da física. Mas o tempo é sempre o mesmo. Não passa de uma ilusão.
As areias, tal como o tempo, teimam em fugir. São um tempo que corre sem olhar para trás. São cavalos que galopam velozes até ao horizonte.

Sinto-me dona de um tempo que é meu, detentora de um poder que não me pertence, mas que me foi confiado. Uma verdadeira omnipotente.
E eis que sou transportada para uma teia de aranha que me emaranha, que me prende, que me suga. Parece que já não me pertenço, que não sou dona de mim mesma. Sou presa fácil de um tempo qualquer. Viajo na esfera dos seus fragmentos.
Sou tempo que quer ser para sempre tempo.
No meio dos seus cruzamentos, julgo que já não sou dona de mim mesma. Sou antes presa fácil de um tempo, de um pretérito. Percorro ruas escuras de um recôndito passado. Sobrevoo memórias esbatidas. De repente estou cega de tempos que me passam pelos olhos, que se colam a mim em distâncias temporais que não sei precisar.
Neste encontro de tempos, sou um filme inacabado, uma folha em branco, palavras por inventar. Sou destino não destinado. Consolido em mim o tudo e o nada. Sou espaço, sou lago, sou mar. Sou sopro, sou brisa, sou ar. Sou substância imaterial. Sou a estranha que vive em mim e alma de mim mesma. Sou cárcere e sou liberdade. Deixo de saber o que fui e o que serei. Sou um enredado de pretéritos. Sou verbos. Sou frases inacabadas. Sou pontuação inexpressiva. Sou quadrado de tempo que se desprendeu e fugiu às leis universais.  Sou equação impossível. Sou variável incógnita.

Sou…

Sou…

Sou. Apenas.

Existo.

E nessa nova condição, sou impulsionada num movimento brusco a abrir os olhos e ver a ampulheta deslizar pelas minhas mãos e cair a meus pés. As areias, outrora aprisionadas, libertam-se e espalham-se pelo chão.

Instala-se um silêncio profundo e mudo.

O tempo foi-se.
Suprimiu-se quando lhe toquei.
Evaporou-se.
Porque o tempo é dono de si mesmo.



2011/05/29

Sonho


O sonho é um mundo à parte. Nele só se aventuram os de espírito livre, os corajosos, os ambiciosos e perseverantes. O sonho é o transporte para a realidade. É a capacidade inata de transformarmos a nossa realidade naquilo que queremos.
Para os conquistarmos basta-nos desejarmos, acreditarmos e lutarmos por eles. Temos de lhes provar que realmente ansiamos por eles, que com eles nos vamos sentir mais completos, mais felizes, mais íntegros.
O sonho é muito pessoal. É intransmissível e incompreensível aos outros. Quem sonha, sonha a partir do mais profundo de si. O sonho é o eco da alma que reclama atenção, satisfação. É um pedido silencioso, macio, sincero, que impera num segundo... e noutro... e noutro... e, que de repente, não se cala. Recusa-se. Exige atenção, pede-nos, implora-nos, fere-nos com o insistente e incoerente desejo de concretização. E é aí que não podemos fugir mais... Só existem duas soluções: ou lhes damos ouvidos e vamos à luta, ou então, tentamos calá-los, sedá-los, abandoná-los nas profundezas do pensamento.
Quem sonha não tem nada a perder. Ao arriscarmos vamos percorrer um caminho em que só os fortes se aventuram, porque só eles se conseguem erguer perante uma adversidade e continuar a sua escalada de cabeça erguida, sem nunca esquecer o seu objectivo.
Ao lutarmos pelos nossos sonhos, vamos descobrindo a nossa verdadeira essência. Vamos descobrir se somos do nosso tamanho ou do tamanho dos nossos sonhos. Vamos sentir que o mundo é tão pequeno, tão pequeno, que qualquer sonho nosso pode ser encontrado na próxima esquina do pensamento.
E nada, mas mesmo nada neste largo oceano de estrelas se compara à emoção, alegria, êxtase, da concretização de um sonho. Porque um sonho pode iluminar uma alma sombria, encontrar uma alma perdida e desvendar uma alma escondida.

2008-01-02

Poema Leve

Divago…

Divago
Na esfera dos meus pensamentos.

Divago…

Divago
Até encontrar abandonado
O sonho outrora semeado.

Mergulho,
Agarro-o,
Liberto-o.
Pego-lhe pelas asas
Que o farão voar.

Um sonho que respira lentamente,
Que ganha cor levemente,
Mas que voará firmemente.

Procuro-o.
Encontro-o.
Sinto-o.
Vivo-o intensamente,
Até se tornar real.

2010

Éter

Éter era o Deus grego dos céus sem limites, a personificação do «céu superior», «aquele que faz brilhar», mas também aquele que «escurece».
Era filho da noite (Nix) e das trevas (Érebo) e irmão do dia (Hemera).

Porque todos nós somos luz e sombra de nós mesmos. Porque todos nós personificamos a noite e o dia. Porque todos nós somos éter e etéreos.