terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ipsis Verbis

Esbatem-se as nuvens num céu acinzentado. A chuva condensa-se e espreme-se num sumo transparente que escorre os céus, como tinta invisível. 
Dou um passo em frente vincando os dois pés na terra molhada até sentir as gotas cravejarem-me a pele. Ainda é noite, mas ao longe avizinham-se os primeiros raios de luz.
As minhas mãos seguram um velho caderno preto, desarticulado de tanto ser lido. Sem pensar duas vezes estendo as mãos e vejo, aos poucos, o bloco dissipar-se, numa fragilidade impressionante.
A capa cede e é levada pelo vento, que a arrasta pelo horizonte. As palavras são agora um conjunto de caracteres indecifráveis, levados pela chuva, como quem é levado pelo tempo.
Secretamente pensava que este exorcismo te ia trazer de volta, mas nada aconteceu. Vingou o silêncio que sempre existiu. Vingou a inexistência que sempre existiu.
Abro as duas mãos e deixo o papel perder a forma. Não me interessa mais o que lá estava escrito. Vejo as palavras perderem a vida que nunca tiveram. Elas juntam-se agora ao invisível de onde vieram, às cinzas da linguagem.
A tinta continua a escorrer, e fico à espera daquela sensação. Aquele desespero de voltar a compor tudo, de voltar atrás, de organizar estes pedaços de papel para que voltem à sua forma original e me transmitam algo como sempre o fizeram. Aquela sensação de morrer um pouco por dentro quando alguma coisa material que nos dizia muito se estraga, se parte. Aquela sensação de desespero que nos mostra a nossa vulnerabilidade, as nossas fragilidades, os nossos medos, as nossas inseguranças. O medo de perder. O medo de te perder.
Mas não.
Não sinto nada.
Absolutamente nada.
Sinto-me como se estivesse vazia, sendo apenas inundada pelo ar que respiro. 
Esta tinta preta que me mancha é o que resta das palavras. É o que resta dos prefácios, apenas. As palavras condensaram-se no tempo. Deixaram de constituir um significado plausível, uma construção lógica no complexo sistema cerebral humano. A minha mente desconectou-se dos léxicos, da lógica, de tudo. Vejo a morte ser consumada, até que não restem fragmentos visíveis daquele que, um dia foi o meu suporte. Não que tivesse qualquer importância vital. A sua ausência não me iria provocar uma falência orgânica que me tirasse o tutano da vida. Apenas eu me posso destruir, não delego essa tarefa a ninguém.
No fundo sabia que as palavras eram apenas isso. Nada mais. Não eram uma porta para a realidade, não eram uma semente. Eram apenas palavras. Daquelas que por muito complexas, muito distintas, muito enigmáticas, nunca iriam ganhar forma, nunca andariam por elas mesmas.
A chuva não pára, muito pelo contrário. Exibe a sua fúria, atingindo o solo com violência. O contraste perfeito com o que se passa dentro de mim. Eu continuo a resistir a essa chuva. Continuo com as mãos juntas, oferecendo à natureza pedaços do nada daquelas palavras.
Palavras que não me alimentam, não me nutrem, que não passam de ar quando verbalizadas e não passam de imagem que o cérebro descodifica e às quais atribui significado, o que torna as palavras pessoais consoante a interpretação.
Para mim estas palavras não são nada… Não têm sabor. Morrem em si próprias. Matam-se umas às outras, até que surjam outras que lhes sirvam de antídoto e lhes retirem o veneno. Sugam-se umas às outras, aniquilam-se para poder simplesmente existir no papel. São exibicionistas, são complicadas, são incompreensíveis. São um código que apenas os olhos certeiros conseguem descodificar. E os meus olhos não conseguem mais ver para além delas do tanto que se esforçaram para vislumbrar um sinal.
Observo silenciosamente o cenário que se apresenta, sem pensar em possíveis elogios fúnebres para o conteúdo destas palavras. Não é preciso dizer nada quando está tudo acabado.
As palavras voam, são livres, não são alcançáveis, não são palpáveis às minhas mãos e não se transformam em acções. Lembra-te disso.

 

1 comentário:

  1. Oh Ana...tu és um ser com uma profundidade enorme...quando dizes "daquele que, um dia foi o meu suporte."..."E os meus olhos não conseguem mais ver para além delas do tanto que se esforçaram para vislumbrar um sinal." e analisando todo o texto, sinto-me abalada...convencida que te conheço, vou ficando surpreendida cada vez mais contigo, convencendo-me de que afinal sou eu que tenho muito a aprender contigo...Acredita...estou emocionada...tanto pelo texto como pela tua escolha musical que completa na perfeição tudo isto que acabei de ler e ouvir e que nem consigo classificar....Um abraço

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