Entro no sótão onde a luz lúgubre ilumina as páginas caídas de um guião que não chegou a realizar-se.
Acto por acto, cena por cena, escrevias, com uma letra cuidada, todos os passos que as personagens à tua volta teriam de dar para pertencerem ao teu pequeno e medíocre mundo.
Eram palavras pensadas, saídas de um lugar de ti que não sei identificar. Construíste fundamentos em terrenos de lama, onde crescia o teu preconceito e as tuas ideias tão já ultrapassadas.
Como um juiz, ditavas o ‘certo’, o ‘errado’, o ‘bonito’, o ‘feio’, o ‘aceitável’, o ‘inaceitável’.
Pensavas ser Deus, e como tal, tinhas de servir a humanidade, proclamando a perfeição que julgavas ver.
Puxo uma cadeira e fico, simplesmente, a observar este grotesco cenário. Sou levada aos lugares onde me aprisionaste com medos, que me fizeram cair, como um baralho de cartas dentro de mim mesma.
Desterraste-me. Exilaste-me.
O meu mundo sempre foi um lugar estranho para ti. Era incompreensível aos teus olhos. Por isso, tentavas cegar-me e guiar-me para os limites bem contornados da tua insignificante terra, onde as ideias eram inférteis e os sentimentos apareciam num solo seco e oco a que chamavas coração.
Alugaste o meu corpo e ocupaste-o durante demasiado tempo, deixando pequenas cicatrizes em cada esquina, que se transformaram, com o passar do tempo, em memórias taciturnas de alguém que já não sou.
As palavras atingiam-me como flechas. Ouvia, sílaba a sílaba, frase a frase, parágrafo a parágrafo, os dardos que ias lançando. E são essas mesmas flechas que, tiradas uma a uma, são o meu troféu de vitória.
Como um esboço, ias-me limando as arestas que pensavas pontiagudas e desajustadas ao desenho final e o meu carvão ia-se esbatendo, dissolvendo-se nas tuas mãos. Ajustes e mais ajustes. Acertos e mais acertos.
No final, tornei-me um esquisso estranho, recheado de traços indefinidos que se transformavam num conjunto abstracto de uma existência que não existia.
Envolvi-me de mais na tua teia, no teu mar, mas resolvi emergir.
Muni-me e fiz-me a uma guerra só minha. Resolvi ser soldado e enfrentar-te. Tu e eu. Apenas. Tu e eu em batalha.
Recolhi todos os teus pontos fracos, porque aprendi a ouvir-te durante muito tempo. E eu fui guardando tudo. Guardei tudo num baú da minha mente. Fui coleccionando os teus esconderijos dentro de mim e, ao pouco, fui abrindo as tuas portas. As portas davam para uma casa com fracos alicerces, que com uma pequena brisa, se iam desmoronando. Verdadeiros castelos no ar. Espaços vazios.
Lentamente o teu império foi-se derrubando e perdeste a coroa para mim.
Uma a uma recolhi as flechas longas e afiadas que me cruzaram o peito e declarei-me dona do meu reino.
Aos poucos, fui sarando e o teu veneno foi saindo de mim. (Sabes que o veneno é sempre uma estratégia de defesa?)
Fui erguendo as cicatrizes da vitória, que me acompanham sempre, porque são parte de mim. De um processo. De uma etapa. De uma guerra.
Venci.
Venci-te.
E hoje, ao ver as folhas que deixaste para trás na tua fuga, não consigo deixar de sorrir.
Abro a gaveta da secretária e pego numa caixa de fósforos, que abro demoradamente. Vou pensando num tempo que já não existe mais, numa rede que já foi desmontada, numa mente que já cicatrizou.
Esfrego o fósforo até ouvir o som seco dar origem a uma chama gloriosa. Atiro o fogo aos escritos, pedaços de uma vida, que avidamente se transformam em cinzas, como se há muito ansiassem este desfecho. Vou observando a matéria transformar-se em cinza e dentro de mim renasce a Fénix há muito perdida.